quarta-feira, 14 de março de 2012

DESCONSTRUINDO SÍSIFO: O TEMPO KAIRÓTICO DA CRÔNICA


Prof. Dr. Gerson Tenório dos Santos

Texto publicado na REVISTA KALÍOPE, São Paulo, ano 3, n. 1, p. jan./jun., 2007.


RESUMO: O objjetivo deste artigo é diswcutir a complexa relação existente na crônica entre o tempo cronológico e o tempo kairótico, uma vez que, como um gênero curto, leve, despretensioso e apegado às minudências do mundo cotidiano urbano, a crônica não pretende somente fazer um retrato do real, um flagrante dos acontecimentos cotidianos nas grandes cidades, mas também problematizar nossa angustiantev relação com o tempo desgastante das ações rotineiras, instaurando sub-repticiamente momentos de grande lirismo e poesia e propiciando nossa participação no tempo criativo tematizado pelos grandes mitos da cultura.

ABSTRACT: The aim of this article is to discuss the complex relation inside the chronicle between the chronological and kairotic time, once as a short, light, unpretentious and linked to the ordinary events of the urban world the chronicle do no intend only to portrait the real world, to register the facts of the great cities quotidian, but also to put in focus our anguishing relationship with the tiring time of the routine actions, creating subrepititiously moments of great lyrism and poetry and propitiating our participation in the creative time has been theme of the great myths of culture.




A crônica, tida como um gênero tipicamente brasileiro, já foi considerada um gênero menor. Isto porque se trata de um gênero narrativo que explora as minudências do real, é curto e despretensioso. Filha do jornal, a crônica tem quase um consumo imediato, servindo para tirar a carga pesada de tantas notícias ruins que lemos em jornais e revistas, já que quase sempre tem um tom humorístico ou tende à leveza. Justamente este caráter de leveza, de cotidianidade, de texto que se pode ler em uma sentada – como diria Poe em sua Filosofia da composição a respeito da poesia – revela traços marcantes quando nos pomos a olhá-la mais de perto. Uma desses traços está na problemática do tempo – a essência de toda crônica –, pois ao trabalhar com o tempo cronológico, o tempo das ações cotidianas, a crônica as coloca em xeque, lançando sobre elas um olhar novo que as reveste de novos significados.


A crônica e o jornal


A crônica, como indicia seu nome, é um gênero devotado ao tempo. O mesmo acontece com o jornal, cuja etimologia remete à palavra dia. Não à toa jornal e crônica há muito se associaram rendendo frutos que colhemos até hoje. No Brasil, diferentemente de outros países, a crônica seguiu um caminho diferente, tornando-se um gênero mais literário que informativo e argumentivo. Nem por isso deixou de se alimentar das notícias divulgadas em jornais, revistas, telejornais e outros meios de comunicação de massa.



A razão de ser do jornal está na divulgação dos acontecimentosdiários, que, pretensamente, são vendidos como verdadeiros, inegáveis e imparciais. Ao dar conta do real por meio da palavra escrita ou falada, divulgada nos mais diferentes meios de comunicação, a tarefa do jornal é informar sobre a infindável quantidade de fatos que nos cercam e nos afetam cotidianamente, abarrontando nossa mente de tanta informação e realidade. O jornal não nos deixa esquecer ou nos evadir de nosso dia-a-dia. Desta forma, a labuta do jornalista se assemelha ao árduo e infindável trabalho Sísifo. No mito grego, ao desobedecer Zeus, Sísifo recebe um castigo torturante e eterno: rolar uma pedra até o topo de uma montanha, até que a mesma desça montanha abaixo e o pobre coitado tenha que levá-la de novo até o topo da montanha e esta novamente retorne à base, sendo reconduzida infinitamente para o alto. O mito de Sísifo ilustra o interminável trabalho de contar e recontar cotidianamente os acontecimentos que se sucedem num aparente sem-fim. Assim, devido aos seus inúmeros expedientes linguísticos que criam a ilusão de estarmos diretamente em contato com os acontecimentos que nos cercam, como a ausência de autor e modalizadores, verbos no indicativo, uso de dêiticos e marcadores de tempo, o jornal cria a sensação de estarmos sendo engolfados pelos fatos brutos e pelo tempo.




Embora a crônica tenha também como objeto as ações cotidianas, sua relação com leitor é completamente diferente das notícias de jornal. Em primeiro lugar, em contraponto à sisudez e à dureza das notícias nos mostra a leveza, o lirismo, o humor do dia-a-dia massificado das grandes cidades, que só podem ser flagrados nos interstícios das notícias. Em segundo lugar, a crônica opera um deslocamento no tempo da notícia e, por extensão, no tempo de nossas ações cotidianas. Convidando-nos a um relaxamento, a uma breve suspensão de nossos afazeres e de nossos hábitos tão urbanamente arraigados, a crônica possibilita uma reconfiguração do tempo, permitindo ao seu leitor uma participação inclusiva não considerada no tempo da notícia. Desta forma, diferentemente do que ocorre com a notícia, o leitor passa de observador a participante, de mero espectador a co-partícipe, ressignificando sua relação com o tempo cotidiano.


Kronos, o alimento da crônica


Devido ao fato de estar intimamente vinculada ao jornal e à revista, o tempo da crônica é visceralmente o tempo presente, ou seja, ela faz dos instantes captados pelos acontecimentos publicados nestes veículos sua razão de ser. Embora muitas crônicas tenham sido reunidas na forma de coletâneas publicadas em livros e estejam fartamente presentes em inúmeros livros didáticos, seu portador primeiro foi a página do jornal ou da revista. Assim, o tempo da crônica está intrinsecamente atrelado ao tempo destes meios de comunicação. E, como sabemos, o tempo da notícia é extremamente breve. Depois de lida, a notícia perde seu frescor e vitalidade. Desta forma, também a crônica sofre do mesmo mal. A crônica não aspira à eternidade, como acontece com outros gêneros literários, porque o seu alimento é o mesmo das notícias cotidianas. É um texto feito para um certo tempo, para ser lido rapidamente e, na maioria das vezes, entreter, suavizar a aspereza do real.



Assim, a crônica assume que seu material de trabalho é o tempo cronológico, o tempo que esvai, se desgasta, o tempo das ações banais cotidianas. Em termos de uma linguagem religiosa, pode-se dizer que o tempo da crônica é o tempo profano, o da miríade de acontecimentos sem densidade de significado. Não à toa o tempo cronológico foi identificado metaforicamente com o deus Crono da mitologia grega.



Para alguns estudiosos, embora o nome do deus Krónos nada tenha a ver com Khrónos, o tempo personificado em grego, por uma questão de jogo de palavras, por uma espécie de homonímia forçada, Crono foi identificado com o tempo que flui, que passa. Para outros, no entanto, o conceito de tempo cronológico está intimamente vinculado ao mito de Crono. Crono, na mitologia grega, é filho mais moço de Géia, a terra, e de Urano, o céu, e pai de Zeus. Ao contrário da maioria dos deuses, ele não representava um lugar, acontecimento, função ou qualidade. Crono pertencia à raça dos deuses conhecidos como titãs. Temendo que seus filhos fossem derrubá-lo, Urano, tão logo nasciam os filhos, devolvia-os ao seio materno. Géia então resolveu libertá-los e pediu aos filhos que a vingassem e a livrassem do esposo. Todos se recusaram, exceto o caçula, Crono, que odiava o pai. Géia entregou a Crono uma foice e quando Urano se deitou à noite sobre ela, Crono cortou-lhe os testículos. Com a façanha de Crono, Urano (Céu) separou-se de Géia (Terra). Crono tomou então o lugar do pai, casando-se com Réia. Ao assumir o poder, Crono tornou-se um déspota pior que seu pai. Temendo ser destronado por um de seus filhos, como haviam predito Urano e Géia, depositários da mântica (conhecimento do futuro), passou a engoli-los à medida que nasciam. Somente Zeus escapou. Grávida deste, Réia fugiu para Creta e deu à luz o caçula. Para enganar o marido, envolveu pedra em panos de linho, que foi dada a ele como se fosse a criança. O deus imediatamente a engoliu. Ao atingir a idade adulta, Zeus ajudou seus irmãos e irmãs a fugirem. Juntos, depuseram Crono, e Zeus tornou-se o rei dos deuses.



Crono, a exemplo do tempo, devora ao mesmo tempo em que gera. A essência do tempo cronológico, em sua infindável remessa de instantes, acontecimentos, dramas, é a constante e voraz consumação, dando lugar a novos acontecimentos, que, por sua vez, também serão devorados para que outros se sucedam.


Com a crônica acontece o mesmo. Uma crônica sempre dará lugar a outra. Pouco ou quase nada de sua história continuará. Como afirma Machado de Assis em O nascimento da crônica, um meio certo de começar uma crônica é por meio de uma trivialidade, como dizer “Que calor!”. O trivial, o aspecto mais mundano de nosso dia-a-dia é o que forma o corpo da crônica. A crônica não trata de personagens virtuosos, exemplares, ou mesmo de acontecimentos grandiosos, pois na crônica não há tempo e nem espaço para a grandiloleqüência, a exemplaridade. O tempo que foge, que escapa, que se sucede na interminável cadeia de momentos é a principal personagem deste gênero.



Outro aspecto interessante ligado ao tempo na crônica diz respeito ao uso de uma linguagem que tende ao oral. É muito comum na crônica o uso somente de diálogos e de um registro muito próximo ao utilizado pelas pessoas em seu dia-a-dia mais banal. Machado de Assis na crônica já citada, por exemplo, diz: “Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações”. Este uso do linguajar popular aproxima cronista e público, encurtando a distância existente entre o tempo do narrador, o tempo da narrativa e o tempo da recepção. A crônica funciona como um diálogo direto, que embora realizado em texto escrito, cria a ilusão de uma aproximação, um encontro íntimo entre amigos. Não à toa Vinícius de Moraes afirma em O exercício da crônica que o cronista faz uma prosa fiada ao contrário da prosa de um ficcionista, que é “levado meio a tapas pelas personagens e situações que, azar dele, criou por que quis”.



Porém, é preciso entender que a crônica é antes de tudo literatura e que como literatura sua intenção não é somente divertir, apresentar os fatos cotidianos como gotas de chuva num dia quente. Por detrás desta aparente despretensão e leveza da crônica há bem mais do que supõe nossos olhos cansados de espreitar o real pela janela das notícias de jornal.


Kairós, o tempo criativo


A crônica, a despeito de sua simplicidade, possui um núcleo de tensão. Diferentemente do conto, que tem uma densidade específica, um conflito único limitado geralmente a um só ambiente e contendo um número reduzido de personagens, a crônica não busca a exemplaridade de um instante da condição humana. Geralmente, é o oposto que se dá. A crônica se interessa pelo aparentemente desinteressante, pelo pitoresco, pelas bordas do que é notícia. Embora seu alimento seja o tempo das ações cotidianas, sua essência é o tempo dentro do tempo cronológico.



Como vimos, a crônica é literatura, uma arte verbal cujo principal objetivo é oferecer aos seus leitores uma outra construção do real, o mundo paralelo do pode ser, permitindo ao homem não só suportar as contingências do mundo concreto como criar pela imaginação possibilidades que atuam logicamente alargando sua visão de mundo e sua ação na realidade.



Porém, a crônica se vale de uma atitude matreira e dúbia. Se, por um lado, dialoga implícita ou implicitamente com o texto jornalístico, cuja principal característica é oferecer aos seus leitores a impressão de que tudo que lêem é a mais pura realidade, por outro desconstrói tais acontecimentos e subverte a perspectiva do tempo. O jornal busca apresentar os fatos do mundo cotidiano como verdadeiros, concretos e, conseqüentemente, em oposição aos inventados, criados pela imaginação de um autor/narrador. O tempo do jornal, desta forma, é o tempo cronológico quantitativo observável por suas marcas de sucessividade na paisagem espacial da realidade. Por outro lado, o narrador-repórter da crônica, com sua linguagem leve, cotidiana, como se fosse uma conversa de bar, envolve o leitor, convidando-lhe a olhar o real tão massificado pela linguagem jornalística de uma forma diferente. E especialmente o tempo, o principal personagem da crônica, reveste-se de significado completamente diferente. Podemos dizer que a vida nos centros urbanos é marcada por uma rapidez e por uma superficialidade como nunca experimentadas pelo homem.



A linguagem jornalística também acompanhou este movimento. É rápida, seca, breve e se contenta somente em informar os aspectos considerados mais importantes dos fatos cotidianos. Assim, notícia de jornal não tem substância, não tem relevo, pois não penetra nas águas abissais da realidade humana a fim de revelar o absurdo do
viver, o humor por detrás das tragédias, a poesia aninhada nos acontecimentos banais da cotidianidade, a beleza insondável dos instantes de alegria, a riqueza de percepção que subjaz ao instante, temas tão constantes em inúmeras crônicas.



O tempo da crônica, assim, é um tempo forte, um tempo que vê nas brechas do tempo cronológico a possibilidade de se revivificar a leitura do real. Em termos bíblicos, poderíamos associar este tempo
ao kairós. Esta palavra grega, que contrasta com chronos, o tempo quantitativo, é usada para denotar qualquer propósito prático em que se apresenta uma boa ocasião para ação. Em termos religiosos, como usado por muitos protestantes, “falamos do momento em a história, em termos de uma situação concreta, amadureceu até o ponto de poder receber a irrupção da manifestação central do Reino de Deus. O Novo Testamento chamou a esse momento de ‘plenitude do tempo’”(...) (TILLICH 1984,p 666). Ou seja, o kairós um tempo de renovação, de criação em que, do ponto de vista religioso, a manifestação da divindade se faz plena e possibilita a dinâmica da auto-transcendência da história. Essa dimensão do kairós apresenta-se mesmo sub-repticiamente nas crônicas mais leves e humorísticas, pois o humor é uma forma de flagrar o real em seu despropósito, em seu caráter inusitado e surpreendente.



O próprio cronista tem clareza desse caráter em seu ofício. Affonso Romano de Sant’Anna, por exemplo, em sua metacrônica O cronista é um escritor crônico (In Para gostar de ler, v. 16) diz-nos que o cronista é um estilita (recomenda que não se confunda com estilista), que era o santo que ficava anos e anos em uma coluna, no deserto meditando e pregando. Termina sua crônica dizendo: “O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar encharcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele”. Walcyr Carrasco, um dos cronistas mais recentes, descobre essa densidade temporal no poder do humor fazer-nos vivos, como nos revela sua crônica O cronista acidental (In Para gostar de ler, v. 20): “Hoje, não viveria sem minhas crônicas. Aprendi muito com elas. A observar o dia-a-dia com um crivo mais agudo. A buscar graça na loucura cotidiana. A rir, até de mim mesmo. (...) Descobri, enfim, que a crônica é uma coisa viva. E até nos momentos mais críticos a gente sempre pode dar uma boa risada”.



Podemos notar que este caráter subversivo, restaurador do tempo kairós está presente de uma forma mais explícita ou mais implícita nas inúmeras crônicas que lemos diariamente. Como exemplo de sua manifestação explícita, podemos citar a famosa crônica A última crônica, de Fernando Sabino. Esta crônica tem como motivo inicial o constante tema da falta de assunto. Num bar na Gávea, a caminho de casa, o cronista relata seu desejo de “coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um”. E enquanto toma seu café lembra-se do verso do poeta: “assim eu quereria o meu último poema”. E ao lançar o olhar em torno de si, onde diz vivem os assuntos que merecem uma crônica, Fernando Sabino escreve uma das crônicas mais pungentes da literatura brasileira, uma crônica que arrebata e emociona, revelando na banalidade do cotidiano uma cena que fala aos nossos corações e mentes.



A cena da família de pretos que vai ao bar comemorar o aniversário da menina com um pedaço de bolo comprado ali e com velinhas trazidas de casa revela a dignidade e densidade de um momento que se traduz na pureza do sorriso do preto para o cronista. Nesta crônica, a relação com o tempo kairós é direta: a menção à ultima crônica do ano, assim como a referência ao tempo da celebração do aniversário da menina remetem-nos diretamente ao tempo da renovação, ao tempo ritualístico da criação. Em meio ao banal, à dispersão alucinante do cotidiano de uma cidade grande, a cena traduzida pelos olhos sensíveis do cronista-poeta instaura um ritual de purificação do qual o leitor é convidado a participar. A pobreza da família de negros e a simplicidade da situação falam-nos da humildade, da ausência de status que estão presentes nos mais diversos rituais de passagem dos povos de todos os tempos. O convite à participação do ritual simples e despojado promove uma identificação que suspende o tempo das ações cotidianas e faz com que sejamos co-partícipes, junto com o poeta, da celebração da vida e da dignidade humana.



Outro exemplo desta presença explícita do tempo kairótico na crônica pode ser encontrado em outra crônica bastante famosa: Recado ao Senhor 903, de Rubem Braga. Escrita na forma de uma carta de um vizinho de apartamento a outro que se queixava contra o barulho, Rubem Braga se utiliza de uma fina ironia para fazer uma crítica atroz à sociedade autoritária, reificadora e esvaziadora das identidades humanas. Remetendo-se o tempo todo a números que substituem as pessoas na sociedade atual, Rubem Braga, no final da crônica, prometendo silêncio ao seu vizinho desconhecido, revela seu desejo de sonhar com outra vida em que as pessoas pudessem viver em comunhão:



...Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro
mundo, em que um homem batesse à porta do outro e
dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música
em tua casa. Aqui estou”. E o outro respondesse: “Entra,
vizinho e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui
estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a
vida é curta e a lua é bela”. E o homem trouxesse sua mulher,
e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho
entoando canções para agradecer a Deus
o brilho das estrelas e o murmúrio da
brisa nas árvores, e o dom da vida,
e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.



Claramente, este trecho faz referência à cena bíblica da eucaristia, uma típica experiência kairótica, e revela o desejo de comunhão dos homens num mundo sacralizado. O tempo do sonho divide claramente o mundo cotidiano dessacralizado da transformação do homem em números, em coisa daquele da comunhão, da participação humana na criação sagrada.


Como exemplo de crônicas que trabalham implicitamente o tempo kairós, podemos citar Férias das férias, de Walcyr Carrasco. Se os cronistas mais representativos da literatura brasileira são cariocas, Carrasco destoa do grupo e centra-se basicamente no cotidiano dos paulistas. Tipicamente humorista e sagaz observador do comportamento dos moradores de São Paulo, dificilmente poderíamos dizer que suas crônicas são poéticas, líricas ou reflexivas. Porém, Carrasco assim mesmo convida-nos a redimensionar e rever ações nas quais não prestamos, às vezes, muita atenção, como ocorre na crônica citada. Férias das férias retrata as complicações, dificuldades e desconfortos de umas férias na praia, um dos prazeres dos paulistanos. Ao elencar com humor e uma dose de sardonismo as peripécias das férias frustradas de uma família paulistana ao alugar uma casa na praia de Boiçucanga, o autor problematiza não só uma atividade de lazer tão cara ao paulistano, como põe em cheque a própria idéia de que o lazer se dá necessariamente fora do ambiente doméstico. Ao suspender nossos juízos tão fortemente arraigados a respeito do uso do tempo livre, Carrasco nos revela a prisão a que somos submetidos cotidianamente pela indústria do lazer e nos faz ver que, muitas vezes o tempo doméstico é o tempo da reconciliação e do descanso merecido pelo tempo gasto
no trabalho. Longinquamente poderíamos perceber, nesta crônica, ecos do sabá, o tempo do descanso religioso que os judeus observam no sétimo dia da semana.



Outro exemplo em que há implicitamente a presença do kairós é a crônica A bola¸ do gaúcho Luís Fernando Veríssimo. Veríssimo também é bastante conhecido por suas crônicas humorísticas e irônicas. Nesta crônica, Veríssimo ironiza os tempos modernos em que as crianças só sabem lidar com jogos eletrônicos e contrapõe o tempo do pai ao tempo do filho. Na crônica, o filho é bom num jogo em que a bola é um blip eletrônico, mas desconhece o funcionamento de uma bola real. Implicitamente a valorização do tempo antigo, representado pelo prazer que o pai sentia ao lembrar-se da bola de couro que ganhara de seu pai, em contraposição ao tempo moderno dos jogos eletrônicos também possui um componente altamente simbólico. Podemos divisar aqui o mito da idade de ouro. Segundo este mito contado por Hesíodo em O trabalho e os dias, houve uma época no tempo de Crono em que os deuses imortais fizeram uma raça de ouro de homens mortais, que à semelhança dos deuses viviam com o coração livre de tristezas e longe de trabalhos e pesares. Possuíam todas as coisas boas, e a terra lhes dava frutos abundantes. A esta idade havia se seguido a de Prata, de Bronze, dos Heróis e de Ferro, a mais decadente de todas. Quanto mais decadente, mais o homem afasta-se do paraíso da Idade de Ouro. A crônica, ao lamentar a decadência do mundo moderno, busca instaurar na relação do homem com o passado, simbolizado pela bola – que também é símbolo do cosmos –, uma integração total em que ação e conhecimento estão em íntima sintonia. A crônica, assim, numa narrativa leve e despretensiosa, coloca para nós, pais e filhos da época atual, a necessidade de se reviver e de se restaurar uma era em que a relação do homem com
a natureza é integradora e plena de abundância.



Considerações finais



A crônica, como vimos, é um gênero literário complexo. Por trás de sua aparente simplicidade, de seu tom leve e brincalhão, de seus temas tão banais e cotidianos, flagramos um texto literário afeito ao oral, à narrativa artesanal curta, divertida e problematizadora da perspectiva ordinária de nosso tempo cronológico. Num tom despretensioso, o narrador envolve o leitor e o convida a descortinar a dimensão densa do real que subjaz aos acontecimentos rápidos e superficiais que nos desumanizam dia a dia. Ao trabalhar com o tempo kairótico, a crônica nos revela que a força vivificante do mito e da poesia pode subsistir nos terrenos mais áridos e num espaço tão pouco fértil como os das grandes cidades.


A crônica nos ensina a extrair do tempo massificado, rotineiro e exaustivo um sopro de ar revitalizante e insiste em nos dizer que no coração de tempo cronológico das ações rotineiras urbanas habita o tempo kairótico, um tempo denso e profundo, centelha de poesia, esperança e renovação.



REFERÊNCIAS


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Um comentário:

  1. Cara Generosa,
    Muito bom conhecer "o tempo Kairótico", termo até então desconhecido para mim. Obrigada!

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