quarta-feira, 14 de março de 2012

O CRIME DO AÇOUGUEIRO, DE MÁRIO PRATA
O ESTADO DE S. PAULO 26/01/00


Quem me contou essa história foi o Mario Palmério. O Mario que morreu há pouco tempo, o Mario igualmente lá de Uberaba, Minas.
Depois de descrever o Chapadão do Bugre lá na Vila dos Confins, depois de virar deputado federal e depois de entrar para a Academia Brasileira de Letras, largou tudo, comprou um barco e uma índia e ficou uns oito anos subindo e descendo o Amazonas, pensando e fazendo bobagens (no bom sentido, como deve ser toda bobagem).
Parava naquelas cidadezinhas, ficava uns dias, ouvia uns casos. Nunca me disse se pretendia escrever um livro tipo Igarapé do Bugre ou Vila dos Manaus. Mas contava - oralmente - casos amazonenses.

Um dia, deitado na sua rede na fazenda lá em Uberaba, relaxava seu corpo alto, suas melenas brancas e longas e coçava o saco. O Mario adorava andar nu. Seu lado índio. Acho que ele tinha um pé na selva amazônica. O caso que ele contou:
A cidade do interior do Amazonas era pequena. Uns cinco mil habitantes. Tinha lá um açougueiro chamado Lázaro (mais pra frente você irá sentir a ironia do nome). Pelo menos o ficcionista disse que ele se chamava Lázaro. E o Lázaro tinha uma bela mulher chamada Maria. Sim, chamada, porque diz o Mario que era chamar que ela ia. Danada, a Maria.

Eis que Maria arrumou um amante. Um amante fixo. O nome dele era Ovídio e vivia da pesca. Sem trocadilho nenhum, Ovídio pescou Maria e a envolveu em sua rede.
Cidade pequena, alguém foi contar para o Lázaro. Até que um dia Ovídio entrou no açougue. O Lázaro pegou aquela machadinha do ofício e, enquanto ia desferindo violentos golpes no tronco de cortar carne, ia dizendo, pelas palavras mineiras do Mario Palmério:

- Olha, moço: minha Maria não é peixe para seu anzol. Você vai pescar noutra freguezia. Aliás, se aceita um convite, pegue seu barco e suma da cidade (passava a lima no corte do machado e desferia mais golpes). Ou então, pare com essas suas andanças que a Maria prefere carne a peixe.

Ovídio ouvia tudo de olho na machadinha. Diz o Mario que chegou a pedir desculpas e que ele não se preocupasse que ele ia sumir do pedaço.

Ovídio não se mudou, mas deixou a Maria que voltou a viver numa boa com o marido. Mas, com o passar do tempo, as carnes de Maria voltaram para a cabeça do peixeiro amante. E Ovídio voltou ao pedaço, já se esquecendo da machadinha.

Novamente o alcoviteiro foi aos ouvidos do Lázaro. Era de manhã e o sangue subiu pra cabeça do homem. Pegou a machadinha e partiu célere para a casa do comborço. Ao atravessar a pracinha, ouviu a notícia. Seu inimigo havia morrido de madrugada. Ataque do coração.

Voltou para o serviço. Aquele desgraçado estava morto, não ia mais incomodar sua mulher. Mas a necessidade da vingança não saía da cabeça dele. Pegou de novo a machadinha e foi até o necrotério. Ia decepar a cabeça do Ovídio, mesmo morto. Ia mostrar para a cidadezinha quem é que era o dono da Maria.

Chegou lá e foi fácil achar o corpo do defunto que aguardava a autópsia. Ficou olhando para aquele corpo frio, aquele amontoado de carne. Não satisfeito em cortar a cabeça do sujeito, antes, porém, resolveu dar uma surra no morto.

Segurou o pescoço do corpo inerte e começou a bater a cabeça dele na laje fria. Sacudindo, xingando, com ódio.

E agora, acredite quem quiser: com aquelas porradas todas o Ovídio voltou à vida. Lázaro ressuscitou o morto. Depois teríamos a explicação médica: havia sido um caso de catalepsia.

O morto acordou apanhando do marido e saiu por uma porta, nu, correndo. Lázaro, com a machadinha na mão, saiu pela outra porta correndo mais ainda e nunca mais foi visto na amazônia. Ovídio está casado com Maria, vivem muito bem. E tiveram um filho que se chama Lázaro.

E, me disse o Mario Palmério, a Maria anda toda ressabiada pelo Agenor, o novo açougueiro.

7 comentários:

  1. Prezada Profa. Generosa e prezados colegas de disciplina,

    fiquei responsável por coletar um texto que pudesse ser classificado como "crônica dissertativa". De acordo com a definição, esse tipo de crônica se caracteriza pela opinião explícita, com argumentos mais "sentimentalistas" do que "racionais". Veio logo à minha mente o Seigneur de Montaigne, o autor dos Ensaios. Embora com certeza o próprio autor nunca tenha referido a seus escritos como "crônicas", penso que temos aí um caso de "crônica dissertativa avant la lettre". No exemplo que cito para vocês, Montaigne disserta sobre o amor e a amizade, valendo-se prioritariamente da 1ª pessoa. Alguém poderia objetar que o texto é filósofico antes de literário, ao que eu responderia que ele é literário por excelência. Montaigne não se preocupa com métodos, o que lhe valeu até certa rejeição no meio dos estudos filosóficos. Mas sua prosa límpida, a salada que faz de "causos" e argumentos os mais diversos, fazem dele um dos fundadores do pensamento francês. A seguir, vai parte dos Ensaios em tradução portuguesa. Espero comentários! Abraço, Alex Sander.

    Amor e Amizade
    Não podemos comparar à amizade a afeição que sentimos para com as mulheres, conquanto ela provenha da nossa escolha, nem tão-pouco podemos pô-la na mesma categoria. O seu fogo, confesso-o,

    Pois não nos é desconhecida a deusa que um doce amargor junta aos cuidados de amor - Catulo, 'Epigrammata'é mais activo, abrasador e acerbo, mas é um fogo intempestivo e volúvel, ondulante e diverso, febril, com altos e baixos e que só se prende a nós por um fio. Na amizade há um calor geral e total, de resto, temperado e igual, um calor constante e tranquilo, todo doçura e suavidade e sem nada de áspero ou de pungente. E o que mais é, no amor não há senão um desejo louco furioso do que nos foge:

    Tal como à lebre segue o caçador, / Por montes e vales, ao frio e ao calor / E mal a vê presa mais não lhe liga, / Só o passo estuga desde que a persiga - Ariosto, 'Orlando Furioso'

    Logo que entra nos domínios da amizade, onde as vontades vão ao encontro uma da outra, o amor esvai-se e enlanguesce. A fruição perde-o, uma vez que o seu objectivo é corporal e está sujeito à saciedade. A amizade, ao invés, é fruída à medida que é desejada, e só desponta, se desenvolve e cresce na fruição, já que é espiritual, e a alma se aperfeiçoa pela prática. Durante essa perfeita amizade, tais afeições passageiras também encontraram lugar para mim, para já não falar de La Boétie, que por de mais o revela nestes seus versos. Assim, os dois tipos de afeição coexistiram em mim, cientes um do outro, mas sem nunca se poderem equiparar: o primeiro, mantendo a sua rota em voo altaneiro e majéstico, e vendo com desdém o outro a fazer piruetas a um nível muito inferior ao seu.

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    1. O texto a meu ver,causa também uma polêmica: há controvérsias quanto as definições de Amor e Amizade. O autor chama Amor, algo mais êfemero, que está sujeito a saciedade. Bem, é um ponto de vista, e neste caso o texto
      realmente se aproxima da crônica dissertativa. Valeu Alex!

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    2. Concordo com seu comentário. Os textos de Montaigne sempre nos fazem rever posicionamentos que parecem estar bem "assentados", mas um ponto fascinante nele, e já levantado por vários críticos, é o caráter de metamorfose contínua que os Ensaios apresentam. Parece que eles se transformam a cada leitura, que uma hora dizem "x" para em outra hora dizerem "y"... Em todos os casos, os argumentos montaignianos são do que há de melhor na literatura. Obrigado pelo comentário!!

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  2. O link para o texto de Montaigne:
    http://www.citador.pt/textos/amor-e-amizade-michel-eyquem-de-montaigne
    Na biblioteca da Unimontes, é possível encontrar a tradução dos Ensaios pelo Sergio Milliet.

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  3. Cara Professora e Caros Colegas.
    Aqui está uma crônica que gosto muito, não sei por que tive um esclarecimento muito bom, depois que a li, rssrr. É uma crônica humorística, o autor tratou com leveza e ironia a questão do envelhecimento, especialmente para as mulheres. Fiquei com vontade de fazer 30 anos. Desculpem, não foi possível postar a crônica neste espaço.

    Segue o link para leitura: http://www.releituras.com/arsant_30anos.asp

    Abraços

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  4. Oi, Damáris, muito bacana sua escolha, realmente uma crônica que merece ser lida! Talvez minha leitura seja ingênua, mas vejo essa crônica mais como lírica do que como humorística. Bem, de qualquer forma uma caraterística não elimina outra. Abraço,
    Alex.

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    1. Bem lembrado Alex. Vejamos como é interessante a posição do leitor. Não penso que sua leitura seja ingênua, ao contrário muito pertinente. Realmente, a crônica possui muito lirismo. E o humor está no tratamento solene que o autor deu a chegada aos 30 anos. Achei muito engraçado, ou talvez a graça está nesse contraponto: rir daquilo que nos deixa perplexo. Para quem vivencia a chegada da maturidade, aos tabus da idade...enfim, não vamos nessa direçao, basta a crônica. Valeu muito o comentário.

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